segunda-feira, 24 de março de 2014

O conceito de felicidade - Aristóteles

Mas, como entendemos o bem? Ele não é certamente semelhante às coisas que somente por acaso têm o mesmo nome. São os bens uma coisa só, então, por serem derivados de um único bem, ou por contribuírem todos para um único bem, ou eles são uma única coisa apenas por analogia? Certamente, da mesma forma que a visão é boa no corpo, à razão é boa na alma, e identicamente em outros casos. Mas talvez, seja melhor deixar de lado estes tópicos por enquanto, pois um exame detalhado dos mesmos seria mais apropriado em outro ramo da filosofia. Acontece o mesmo em relação à forma do bem; ainda que haja um bem único que seja um predicado universal dos bens, ou capaz de existir separada e independente, tal bem não poderia obviamente ser predicado ou atingido pelo homem, e agora estamos procurando algo atingível. Talvez alguém possa pensar que vale a pena ter conhecimento deste bem, com vistas aos bens atingíveis e praticáveis; com efeito, usando-o como uma espécie de protótipo, conheceremos melhor os bens que são bons para nós e, conhecendo-os, poderemos atingi-los. Este argumento tem alguma plausibilidade, mas parece colidir com o método científico; todas as ciências, com efeito, embora visem a algum bem e procurem suprir-lhe as deficiências, deixam de lado o conhecimento da forma do bem. Mais ainda: não é provável que todos os praticantes das diversas artes desconheçam e nem sequer tentem obter uma ajuda tão preciosa. Também é difícil perceber como um tecelão ou um carpinteiro seria beneficiado em relação ao seu próprio oficio com o conhecimento deste “bem em si”, ou como uma pessoa que vislumbrasse a própria forma poderia vir a ser um médico ou general melhor por isto. Com efeito, não parece que um médico estude a “saúde em si”, e sim a saúde do homem, ou talvez até a saúde de um determinado homem; ele está curando indivíduos. Mas já falamos bastante sobre estes assuntos. Voltemos agora ao bem que estamos procurando, e vejamos qual a sua natureza. Em uma atividade ou arte o bem tem uma aparência, e em outros casos outra. Ele é diferente em medicina, em estratégia, e o mesmo acontece nas artes restantes. Que é então o bem em cada uma delas? Será ele a causa de tudo que se faz? Na medicina ele é a saúde, na estratégia é a vitória, na arquitetura é a casa, e assim por diante em qualquer outra esfera de atividade, ou seja, o fim visado em cada ação e propósito, pois é por causa dele que os homens fazem tudo mais. Se há, portanto, um fim visado em tudo que fazemos, este fim é o bem atingível pela atividade, e se há mais de um, estes são os bens atingíveis pela atividade. Assim, a argumentação chegou ao mesmo ponto por um caminho diferente, mas devemos tentar a demonstração de maneira mais clara. Já que há evidentemente mais de uma finalidade, e escolhemos algumas delas (por exemplo, a riqueza, flautas ou instrumentos musicais em geral) por causa de [isto é, como meios para] algo mais, obviamente nem todas elas são finais; mas o bem supremo é evidentemente final. Portanto, se há somente um bem final, este será o que estamos procurando, e se há mais de um, o mais final dos bens será o que estamos procurando. Chamamos aquilo que é mais digno de ser perseguido em si mais final que aquilo que é digno de ser perseguido por causa de outra coisa, e aquilo que nunca é desejável por causa de outra coisa chamamos de mais final que as coisas desejáveis tanto em si quanto por causa de outra coisa e, portanto, chamamos absolutamente final aquilo que é sempre desejável em si, e nunca por causa de algo mais. Parece que a felicidade [eudaimonia] mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais. Mas, as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma.

ARISTÓTELES ÉTICA A NICÔMACO LIVRO II 1

Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se. e cresce graças ao ensino — por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter-se formado o seu nome por uma pequena modificação da palavra (hábito). Por tudo isso, evidencia-se também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, à pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra. Não é, pois, por natureza, nem contrariando a natureza que as virtudes se geram em nós. Diga-se, antes, que somos adaptados por natureza a recebê-las e nos tornamos perfeitos pelo hábito. Por outro lado, de todas as coisas que nos vêm por natureza, primeiro adquirimos a potência e mais tarde exteriorizamos os atos. Isso é evidente no caso dos sentidos, pois não foi por ver ou ouvir freqüentemente que adquirimos a visão e a audição, mas, pelo contrário, nós as possuíamos antes de usá-las, e não entramos na posse delas pelo uso. Com as virtudes dá-se exatamente o oposto: adquirimo-las pelo exercício, como também sucede com as artes. Com efeito, as coisas que temos de aprender antes de poder fazê-las, aprendemo-las fazendo; por exemplo, os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo esse instrumento. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assim com a temperança, a bravura, etc. Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal desiderato falha no desempenho da sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as boas e as más constituições. Ainda mais: é das mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda virtude, assim como toda arte: de tocar a lira surgem os bons e os maus músicos. Isso também vale para os arquitetos e todos os demais; construindo bem, tornam-se bons arquitetos; construindo mal, maus. Se não fosse assim não haveria necessidade de mestres, e todos os homens teriam nascido bons ou maus em seu ofício. Isso, pois, é o que também ocorre com as virtudes: pelos atos que praticamos em nossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo que fazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nos tornamos valentes ou covardes. O mesmo se pode dizer dos apetites e da emoção da ira: uns se tornam temperantes e calmos, outros intemperantes e irascíveis, portando-se de um modo ou de outro em igualdade de circunstâncias. Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade dos atos que praticamos, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres. E não é coisa de somenos que desde a nossa juventude nos habituemos desta ou daquela maneira. Tem, pelo contrário, imensa importância, ou melhor: tudo depende disso.

ARISTÓTELES ÉTICA A NICÔMACO LIVRO II 2

Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as outras — porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos tornarmos bons, do contrário o nosso estudo seria inútil —, devemos examinar agora a natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los; pois que, como dissemos, eles determinam a natureza dos estados de caráter que daí surgem. Ora, que devemos agir de acordo com a regra justa é um princípio comumente aceito, que nós encamparemos. Mais tarde havemos de nos ocupar dele, examinando o que seja a regra justa e como se relaciona com as outras virtudes. Uma coisa, porém, deve ser assentada de antemão, e é que todo esse tratamento de assuntos de conduta se fará em linhas gerais e não de maneira precisa. Desde o princípio fizemos ver que as explicações que buscamos devem estar de acordo com os respectivos assuntos. Tal como se passa no que se refere à saúde, as questões de conduta e do que é bom para nós não têm nenhuma fixidez. Sendo essa a natureza da explicação geral, a dos casos particulares será ainda mais carente de exatidão, pois não há arte ou preceito que os abranja a todos, mas as próprias pessoas atuantes devem considerar, em cada caso, o que é mais apropriado à ocasião, como também sucede na arte da navegação e na medicina. Mas, embora o nosso tratado seja desta natureza, devemos prestar tanto serviço quanto for possível. Comecemos, pois, por frisar que está na natureza dessas coisas o serem destruídas pela falta e pelo excesso, como se observa no referente à força e à saúde (pois, a fim de obter alguma luz sobre coisas imperceptíveis, devemos recorrer à evidência das coisas sensíveis). Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e, da mesma forma, o alimento ou a bebida que ultrapassem determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde ao passo que, sendo tomados nas devidas proporções, a produzem, aumentam e preservam. O mesmo acontece com a temperança, a coragem e as outras virtudes, pois o homem que a tudo teme e de tudo foge, não fazendo frente a nada, torna-se um covarde, e o homem que não teme absolutamente nada, mas vai ao encontro de todos os perigos, torna-se temerário; e, analogamente, o que se entrega a todos os prazeres e não se abstém de nenhum torna-se intemperante, enquanto o que evita todos os prazeres, como fazem os rústicos, se torna de certo modo insensível. A temperança e a coragem, pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, e preservadas pela mediania. Mas não só as causas e fontes de sua geração e crescimento são as mesmas que as de seu perecimento, como também é a mesma esfera de sua atualização. Isto também é verdadeiro das coisas mais evidentes aos sentidos, como a força, por exemplo: ela é produzida pela ingestão de grande quantidade de alimento e por um exercício intenso, e quem mais está em condições de fazer isso é o homem forte. O mesmo ocorre com as virtudes: tornamo-nos temperantes abstendo-nos de prazeres, e é depois de nos tornarmos tais que somos mais capazes dessa abstenção. E igualmente no que toca à coragem, pois é habituando-nos a desprezar e arrostar coisas terríveis que nos tornamos bravos, e depois de nos tornarmos tais, somos mais capazes de lhes fazer frente.

Ética a Nicômaco - A doutrina do meio-termo - Aristóteles

8. Em relação ao meio-termo, em alguns casos é a falta e em outros é o excesso que está mais afastado; por exemplo, não é a temeridade, que é o excesso, mas a covardia, que é a falta, que é mais oposta à coragem, e não é a insensibilidade, que é uma falta, mas a concupiscência, que é um excesso, que é mais oposta à moderação. Isto acontece por duas razões; uma delas tem origem na própria coisa, pois por estar um extremo mais próximo ao meio-termo e ser mais parecido com ele, opomos ao intermediário não o extremo, mas seu contrário. Por exemplo, como se considera a temeridade mais parecida com a coragem, e a covardia mais diferente, opomos esta última à coragem, pois as coisas mais afastadas do meio-termo são tidas como mais contrárias a ele; a outra razão tem origem em nós mesmos, pois as coisas para as quais nos inclinamos mais naturalmente parecem mais contrárias ao meio-termo. Por exemplo, tendemos mais naturalmente para os prazeres, e por isso somos levados mais facilmente para a concupiscência do que para a moderação. Chamamos, portanto, contrárias ao meio-termo as coisas para as quais nos sentimos mais inclinados; logo, a concupiscência, que é um excesso, é mais contrária à moderação. 9. Já explicamos suficientemente, então, que a excelência moral é um meio-termo e em que sentido ela o é, e que ela é um meio-termo entre duas formas de deficiência moral, uma pressupondo excesso e outra pressupondo falta, e que a excelência moral é assim porque sua característica é visar às situações intermediárias nas emoções e nas ações. Por isso, ser bom não é um intento fácil, pois em tudo não é um intento fácil determinar o meio – por exemplo, determinar o meio de um círculo não é para qualquer pessoa, mas para as que sabem; da mesma forma, todos podem encolerizar-se, pois isso é fácil, ou dar ou gastar dinheiro; mas proceder assim em relação à pessoa certa até o ponto certo, no momento certo, pelo motivo certo e da maneira certa não é para qualquer um, nem é fácil; portanto, agir bem é raro, louvável e nobilitante. Quem visa ao meio-termo deve primeiro evitar o extremo mais contrário a ele, de conformidade com a advertência de Calipso: “mantém a nau distante desta espuma e turbilhão.” De dois extremos, com efeito, um induz mais em erro e o outro menos; logo, já que atingir o meio-termo é extremamente difícil, a melhor entre as alternativas restantes é, como se costuma dizer, escolher o menor dos males, e a melhor maneira de atingir este objetivo é a que descrevemos. Mas devemos estar atentos aos erros para os quais nós mesmos nos inclinamos facilmente, pois algumas pessoas tendem para uns e outras para outros; descobri-los-emos mediante a observação do prazer ou do sofrimento que experimentamos. Isto feito, devemos nos dirigir resolutamente para o extremo oposto, pois chegaremos à situação intermediária afastando-nos tanto quanto possível do erro, como se faz para acertar a madeira empenada. Em tudo devemos precaver-nos, principalmente contra o que é agradável e contra o prazer, pois não somos juízes imparciais diante deste. Devemos sentir-nos em relação ao prazer da mesma forma que os anciãos do povo se sentiram diante de Helena, e repetir em todas as circunstâncias as suas palavras, pois se o afastarmos de nós é menos provável que erremos. Em resumo, é agindo desta maneira que seremos mais capazes de atingir o meio-termo. Mas, sem dúvida, isto é difícil, especialmente nos casos particulares, porquanto não é fácil determinar de que maneira, e com quem e por que motivo, e por quanto tempo devemos encolerizar-nos; [a] às vezes nós mesmos louvamos as pessoas que cedem e as chamamos de amáveis; [b] mas às vezes louvamos aquelas que se encolerizam e a chamamos de viris. Entretanto, as pessoas que se desviam um pouco da excelência não são censuradas, quer o façam no sentido do mais, quer o façam no sentido do menos; censuramos apenas as pessoas que se desviam consideravelmente, pois estas não passarão despercebidas. Mas não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável (de fato, nada que é percebido pelos sentidos é fácil de definir); tais coisas dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da percepção. Isto é bastante para determinar que a situação intermediária deve ser louvada em todas as circunstâncias, mas que às vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio-termo e o que é certo.

Virtudes intelectuais e sabedoria prática (Aristóteles - Ética a Nicômaco)

Com referência ao discernimento [sabedoria prática, prudência – phronesis], chegaremos à sua definição se considerarmos quais são as pessoas dotadas desta forma de excelência [virtude]. Pensa-se que é característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente par si mesma, não em relação a um aspecto particular – por exemplo, quando se quer saber quais as espécies de coisas que concorrem para a saúde e para o vigor físico –, e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de um modo geral. A evidência disto é o fato de dizermos que uma pessoa é dotada de discernimento em relação a algum aspecto particular quando ela calcula bem com vistas a algum objetivo bom, diferente daquelas que são o objetivo de uma arte qualquer. Consequentemente, no sentido mais geral a pessoa capaz de bem deliberar é dotada de discernimento. Mas ninguém delibera acerca das coisas invariáveis, nem acerca de ações que não podem ser praticadas. Portanto, uma vez que o conhecimento científico envolve demonstração, mas não pode haver demonstração de coisas cujos primeiros princípios são variáveis, porque tudo nelas é variável, e porque é impossível deliberar acerca de coisas que são como são por necessidade, o discernimento não pode ser conhecimento científico nem arte. [1] Ele não pode ser ciência porque aquilo que se refere às ações admite variações; [2] Nem arte, porque agir e fazer são coisas de espécies diferentes. A alternativa restante, então, é que o discernimento é uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com as coisas boas ou más para os seres humanos. De fato, enquanto fazer tem uma finalidade diferente do próprio ato de fazer, a finalidade na ação não pode ser senão a própria ação, pois agir é uma finalidade em si. 13. Devemos então examinar mais uma vez a excelência moral, pois o que ocorre com ela tem estreita analogia com o que acontece com o discernimento em sua relação com o talento. O discernimento e o talento não são a mesma coisa, mas são coisas semelhantes, e a excelência natural se relaciona de maneira idêntica com a excelência em sentido estrito. Realmente, todos pensamos que cada tipo de caráter de certo modo condiz naturalmente com quem o possui, pois desde o momento exato do nascimento nós seríamos justos, ou dotados de autodomínio, ou corajosos, ou teríamos outras qualidades morais. Não obstante, esperamos descobrir que o verdadeiro bem é algo diferente, e que as várias formas de excelência moral no sentido estrito condizem conosco de outra maneira. De fato, até as crianças e os animais selvagens possuem as disposições naturais, mas sem a razão elas podem evidentemente ser nocivas. De qualquer modo, parece bastante óbvio que uma pessoa pode ser induzida em erro pelas disposições naturais, da mesma forma que um corpo pesado destituído de visão pode chocar-se violentamente com obstáculos por lhe faltar a visão; acontece o mesmo na esfera moral, mas se uma pessoa de boa disposição natural dispõe de inteligência passa a ter excelência em termos de conduta, e a disposição que antes tinha apenas a aparência de excelência moral passa a ser excelência moral no sentido estrito. Portanto, da mesma forma que na parte de nossa alma que forma opiniões há dos tipos de qualidades, que são o talento e o discernimento, na parte moral também há dois tipos, que são a excelência moral natural e a excelência moral em sentido estrito, e esta última pressupõe discernimento. É por isto que algumas pessoas dizem que todas as formas de excelência moral são formas de discernimento, razão pela qual Sócrates sob certos aspectos estava certo e sob outros aspectos estava errado; com efeito, pensando que todas as formas de excelência moral são formas de discernimento ele estava errado, mas dizendo que a excelência moral pressupõe discernimento ele estava certo. Uma prova desta asserção é que ainda hoje todas as pessoas que definem a excelência moral, depois de mencionar a disposição moral e seus objetivos acrescentam que se trata de uma disposição consentânea com a reta razão; e a reta razão e a razão consentânea com o discernimento. Todas as pessoas, então, parecem de certo modo adivinhar que a excelência moral é uma disposição desta natureza, ou seja, a disposição consentânea com o discernimento. Mas devemos ir um pouco além, pois a excelência moral não é apenas a disposição consentânea com a reta razão; ela é a disposição em que está presente a reta razão, e o discernimento é a reta razão relativa à conduta. Sócrates pensava portanto que as várias formas de excelência moral são manifestações da razão, pois dizia que todas elas eram formas de conhecimento científico, enquanto nós pensamos que elas pressupõem a manifestação da razão. É claro, então, diante do que foi dito, que sem o discernimento não é possível ser bom no sentido próprio da palavra, nem é possível ter discernimento sem a excelência moral. Desta maneira podemos também refutar o argumento dialético segundo o qual se poderia sustentar que as várias formas de excelência moral existem separadamente umas das outras; poder-se-ia dizer que a mesma pessoa não é dotada da melhor maneira pela natureza para a prática de todas as formas de excelência moral, de tal modo que ela já teria adquirido uma enquanto ainda não tinha adquirido outra. Esta afirmação é possível a respeito das formas naturais de excelência moral, mas não a respeito daquelas em relação às quais uma pessoa é qualificada de boa em sentido irrestrito, pois juntamente com uma qualidade - o discernimento - a pessoa terá todas as formas de excelência moral. E é óbvio que, ainda que o discernimento não tivesse qualquer valor prático, teríamos necessidade dele porque ele é a forma de excelência moral da parte de nosso intelecto à qual ele convém; é óbvio também que a escolha não será acertada sem o discernimento, da mesma forma que não o será sem a excelência moral, pois o discernimento determina o objetivo e a excelência moral nos faz praticar as ações que a levam ao objetivo determinado. Mas apesar disto o discernimento não tem o primado sobre a sabedoria filosófica, isto é, sobre a parte mais elevada de nosso intelecto, da mesma forma que a arte dá medicina não tem o primado sobre a saúde, pois a arte da medicina não usa a saúde mas se esforça para que ela exista; ela emite ordens, então, no interesse da saúde, mas não dá ordens à saúde. Mais ainda: sustentar o primado do discernimento equivaleria a dizer que a ciência política comanda até os deuses, porque ela emite ordens acerca de todos os assuntos da cidade. É por esta razão que pensamos que homens como Péricles têm discernimento, porque podem ver o que é bom para si mesmos e para os homens em geral; consideramos que as pessoa s capazes de fazer isto são capazes de bem dirigir as suas casas e cidades. É esta explicação do nome ‘moderação’, que significa ‘preservar o discernimento’. O que a moderação preserva é a nossa convicção quanto ao nosso bem, pois o prazer e o sofrimento, na verdade, não destroem todas as convicções – por exemplo, eles não destroem a convicção no sentido de que o triângulo tem ou não tem seus ângulos iguais aos de dois ângulos retos, mas somente convicções acerca de atos a praticar. Efetivamente, os primeiros princípios das ações que praticamos estão na finalidade a que elas visam, mas as pessoas desgastadas pelo prazer ou pelo sofrimento fracassam inteiramente quando se trata de discernir qualquer destes primeiros princípios – de discernir que por causa destes ou por estes elas devem escolher e praticar todos os atos que elas escolhem e praticam –, pois a deficiência moral destrói os primeiros princípios. O discernimento deve ser então uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com os bens humanos. Mas, além disso, embora haja uma excelência em matéria de arte, não há tal excelência em matéria de discernimento; na arte, é preferível a pessoa que erra conscientemente, mas em matéria de discernimento, à semelhança do que ocorre com as várias formas de excelência, ocorre o contrário. É claro, então, que o discernimento é uma forma de excelência, e não uma arre. Havendo, portanto, duas partes da alma dotadas de razão, o discernimento deve ser uma forma de excelência de uma das duas, ou seja, da parte que forma opiniões, pois a opinião se relaciona com o que é variável, da mesma forma que o discernimento. O discernimento, entretanto, não é apenas uma qualidade racional, e isto é evidenciado pelo fato de se poder deixar de usar uma faculdade puramente racional, mas não o discernimento.