quinta-feira, 24 de maio de 2012
TRATADO ACERCA DO ENTENDIMENTO HUMANO - JOHN LOCKE
LIVRO II - AS IDEIAS
AS IDÉIAS EM GERAL E SUA ORIGEM
1.Idéia é o objeto do pensamento. Todo homem tem consciência que pensa, e que quando está pensando sua mente se ocupa de idéias.Por conseguinte, é indubitável que as mentes humanas têm várias idéias,expressas, entre outros, pelos termos brancura, dureza, doçura, pensamento,movimento, homem, elefante, exército, embriaguez. Disso decorrea primeira questão a ser investigada: como elas são apreendidas?Consiste numa doutrina aceita que o ser primordial dos homens tem idéias inatas e caracteres originais estampados em sua mente. Já examinei,em linhas gerais, essa opinião, e suponho que o que ficou dito nolivro anterior será facilmente admitido quando tiver mostrado como o entendimento obtém todas as suas idéias, e por quais meios e graus elas podem penetrar na mente; com este fim solicitarei a cada um recorrer à sua própria observação e experiência.
2. Todas as idéias derivam da sensação ou reflexão. Suponhamos, pois, que a mente é, como dissemos, um papel em branco, desprovida de todos os caracteres, sem nenhuma idéia; como ela será suprida? De onde lhe provém este vasto estoque, que a ativa e ilimitada fantasia do homem pintou nela com uma variedade quase infinita? De onde apreende todos os materiais da razão e do conhecimento? A isso respondo, numa palavra: da experiência. Todo o nosso conhecimento está nela fundado, e dela deriva fundamentalmente o próprio conhecimento. Empregada tanto nos objetos sensíveis externos como nas operações internas de nossas mentes, que são por nós mesmos percebidas e refletidas, nossa observação supre nossos entendimentos com todos os materiais do pensamento. Dessas duas fontes de conhecimento jorram todas as nossas idéias, ou as que possivelmente teremos.
3. O objeto da sensação é uma fonte das idéias. Primeiro, nossos sentidos, familiarizados com os objetos sensíveis particulares, levam para a mente várias e distintas percepções das coisas, segundo os vários meios pelos quais aqueles objetos os impressionaram. Recebemos, assim, as ideias de amarelo, branco, quente, frio, mole, duro, amargo, doce e todas as idéias que denominamos de qualidades sensíveis. Quando digo que os sentidos levam para a mente, entendo com isso que eles retiram dos objetos externos para a mente o que lhes produziu estas percepções. A esta grande fonte da maioria de nossas idéias, bastante dependente de nossos sentidos,dos quais se encaminham para o entendimento, denomino sensação.
4. As operações de nossas mentes consistem na outra fonte de idéias. Segundo, a outra fonte pela qual a experiência supri o entendimento com idéias é a percepção das operações de nossa própna mente,que se ocupa das idéias que já lhe pertencem. Tais op~rações, quando a alma começa a refletir e a considerar, suprem o entendImento com outra série de idéias que não poderia ser obtida das coisas externas, tais como a percepção, o pensamento, o duvidar, o crer, o raciocinar, o conhecer, o querer e todos os diferentes atos de nossas propnas mentes. Tendo disso consciencia, observando esses atos em nós mesmos, nós os incorporamos em nossos entendimentos como idéias distintas, do mesmo modo que fazemos com os corpos que impressionam nossos sentidos. Toda gente tem esta fonte de idéias completamente em si mesma; e, embora não a tenha sentido como relacionada com os objetos externos, provavelmente ela está e deve propriamente ser chamada de sentido interno. Mas, como denomino a outra de sensação, denomino esta de reflexao: Ideias que se dão ao luxo de serem tais apenas quando a mente reflete acerca de suas próprias operações. Na parte seguinte deste discurso, quero que se entenda que a reflexão significa a mente observando suas propnas operaçoes como elas se formam, e como elas se tornam as idéias dessas operaçoes no entendimento. Afirmo que estas duas, a saber, as coisas materiais externas,como objeto da sensação, e as operações de nossas próprias mentes, como objeto da reflexão, são, a meu ver, os únicos dados onginais dos quais as idéias derivam. O termo operações é usado aqui em sentido lato, compreendendo não apenas as ações da mente sobre suas idéias, mas também certos tipos de paixões que às vezes nascem delas, tais como a satisfação ou inquietude que nascem de qualquer pensamento.
5. Todas as nossas idéias derivam de uma ou de outra fonte.Parece-me que o entendimento não tem o menor vislumbre de uma idéia se não a receber de uma das duas fontes. Os objetos externos suprem a mente com as idéias das qualidades sensíveis, que são todas as diferentes percepções produzidas em nós, e a mente supre o entendimento com ideias através de suas próprias operações. Quando efetuarmos uma investigação completa de ambos, de seus vários modos, combinações e relações, descobriremos que eles contêm todo o nosso estoque de idéias, e que não temos nada em nossas mentes a não ser o derivado de um desses dois meios. Se alguém examinar seus próprios pensamentos, dir-me-á, então, se todas as idéias originais que lá estão são algo mais do que os objetos de seus sentidos, ou das operações de sua mente encarada como objeto de sua reflexão; e, por mais ampla que seja a massa de conhecimentos lá localizada, por mais que ele imagine, verá, assumindo um ponto de vista estrito, que não tem idéia alguma em sua mente, a não ser o que foi por uma dessas duas impresso, embora talvez compostas em infinita variedade e ampliadas pelo entendimento, como veremos adiante.
6. Observável nas crianças. Quem considerar com atenção a situação de uma criança quando vem ao mundo quase não terá razão para supor que ela se encontra com uma abundância de idéias que constituirão o material de seu futuro conhecimento. Gradualmente, será delas provida; embora as idéias das qualidades óbvias e familiares se imprimam antes de a memória começar a fazer um registro do tempo e da ordem, será, freqüentemente, bem mais tarde que certas qualidades incomuns surgem no caminho das crianças, e poucos homens não se lembram de quando se familiarizaram com elas; e, se fosse proveitoso, não há dúvida que uma criança seria de tal modo ordenada para ter apenas algumas das idéias ordinárias até desenvolver-se num homem. Mas, como todos os seres viventes se encontram envoltos por corpos que perpétua e diversamente os impressionam, surge uma variedade de idéias, levadas ou não em consideração,que se imprimem nas mentes das crianças. Luz e cores estão à disposição em toda parte em que o olho estiver apenas aberto; sons e certas qualidades sensíveis não se omitem de procurar seus próprios sentidos, forçando sua entrada na mente; mesmo assim, penso ser facilmente admitido que, se uma criança fosse mantida num lugar em que apenas visse o branco e o preto até a idade adulta, não teria idéia do vermelho ou do verde, do mesmo modo que quem jamais experimentou o gosto da ostra ou do abacaxi não teria esses gostos determinados.
7. Os homens estão diversamente supridos dessas idéias, segundo os diferentes objetos com os quais entram em contato. Os homens são, portanto, supridos com menos ou mais idéias simples do exterior, à medida que os objetos com os quais entram em contato oferecem maior ou menor variedade; estão supridos com as operações internas de suas mentes, à medida que refletem mais ou menos sobre elas; portanto, a menos que dirijam seus pensamentos para esta via e a considerem atentamente, não terão mais idéias claras e distintas de todas as operações de sua mente,e em tudo que puder ser observado acerca desse assunto, quer tenham todas as idéias particulares de qualquer paisagem, quer das partes dos movimentos de um relógio, deverão encarar e prestar atençao a todos os seus pormenores. A pintura ou o relógio podem estar de tal modo situados que diariamente surgem no caminho de um homem; mesmo assim, ele terá uma idéia confusa de todas as partes de que são feitos enquanto nao se aplicar com atenção e considerar cada uma delas pormenorizadamente.
8. As idéias de reflexão são posteriores, porque necessitam de atenção. Vemos, assim, a razão pela qual bem mais tarde a maioria das crianças adquire idéias das operações de suas próprias mentes. E algumas nao tem idéias claras ou perfeitas da maioria de suas operaçoes durante toda a vida. Embora tenham a mente continuamente atingida por visoes flutuantes,estas não a impressionam suficiente e profundamente, marcando-a com idéias claras, distintas e duráveis, enquanto o entendimento nao se volta para si mesmo e reflete sobre suas próprias operações, tornando-as o objeto de sua própria contemplação. Quando as cnanças chegam ao mundo pela primeira vez, encontram-se rodeadas por uma infinidade de coisas novas, que, por constante solicitação de seus sentidos, onentam a mente constantemente para elas, avançando para observar de novo, e se deliciando com a variedade cambiante de objetos. São, assim, os primeiros anos usualmente empregados e entretidos em olhar para fora. A tarefa dos homens consiste em se familiarizarem com o que eXiste para ser encontrado externamente; e assim, crescendo com atenção constante para as sensações externas, raramente os homens fazem alguma reflexão considerável sobre o que ocorre com eles, até atingirem a idade adulta; e alguns jamais fazem tal reflexão.
9. A alma começa a ter idéias quando começa a perceber. Perguntar quando um homem começa a ter quaisquer idéis equivale a perguntar quando começa a perceber, pois dá no mesmo dizer ter zde!as ou ter percepção. Sei que alguns são de opinião que a alma sempre pensa, e contanto que exista, tem constante e por si mesma percepção real das ideias, e que o pensamento real é inseparável da alma, como o é a extensao real do corpo. Sendo tudo isso verdadeiro, inquirir. acerca da ongem das ldeias dos homens equivale a inquirir acerca da ongem de sua alma. com base nisso, a alma e suas idéias, como o corpo e sua extensao, começarao ambos a existir ao mesmo tempo.
10. A alma nem sempre pensa, pois isto necessita de provas. Supor-se, porém, que a alma antecede, coexiste ou aparece certo tempo depois dos primeiros rudimentos ou do começo da Vida no corpo e tema para ser discutido por quem for mais bem-dotado. Confesso que possuo uma dessas almas apáticas, que nem sempre têm percepçao de si mesmas ao contemplar idéias, nem posso conceber nada mais necessário à alma do que sempre pensar, ao corpo de estar sempre em movimento, e imagino que a percepção das idéias é para a alma o que o movimento é para o corpo, isto é, não é sua essência, mas uma de suas operações. Portanto, embora o pensamento jamais possa ser a tal ponto suposto como ação apropriada da alma, ainda assim não é necessário supor que ela estaria sempre pensando, sempre em ação. É este, talvez, o privilégio do infinito Autor e Protetor de todas as coisas, "que nunca repousa e nem dorme", o que não é admissível para nenhum ser finito; pelo menos não o é para a alma do homem. Sabemos, certamente por experiência, que às vezes pensamos; daí chegamos a esta conclusão infalível: há alguma coisa em nós que tem o poder de pensar. Mas de que esta substância esteja perpetuamente pensando, ou não, não podemos ter mais segurança do que nos informa a experiência. Afirmar que o pensamento real é essencial à alma e inseparável dela é uma petição de princípio e não uma prova racional, sendo necessário apresentá-la, por não se tratar de uma proposição evidente por si mesma. Mas insistir que esta proposição - "a alma sempre pensa" - é evidente por si mesma, com a qual todos concordam apenas através de uma primeira inquirição, leva-me a pedir auxílio a todos os homens. Quando digo que tenho dúvidas se pensei ou não durante toda a noite, isto implica que se trata de uma questão sobre um fato e que não se pode aceitar, para prová-la, uma hipótese consistindo na própria coisa em questão, da qual não se pode chegar a nenhuma prova. Seria, pois, o mesmo que supor que todos os relógios pensam, desde que seus ponteiros se movimentam, ficando disso, portanto, provado, sem qualquer dúvida,que meu relógio pensou durante toda a noite passada. Quem não quiser se equivocar, deve construir sua hipótese, derivada da experiência sensível, sobre um fato, e não supor um fato devido a essa hipótese, isto é, porque supõe ser assim, o que como prova equivale a isto: devo necessariamente ter pensado durante toda a noite passada, porque alguém supõe que sempre penso, embora eu mesmo nem sempre o perceba.
Entretanto, os homens enamorados de suas próprias opiniões podem não só supor o que está em questão, como recorrer ao fato errôneo. De que outro modo poderia alguém tirar de minha inferência que uma coisa não é porque não a sentimos no sono? Não digo que não existe alma no homem porque não a sente no sono, mas digo: não pode pensar um momento sequer, acordado ou dormindo, sem ser sensível a isso. Sermos sensíveis a isso não é uma coisa necessária para todas as coisas; é, contudo, para os nossos pensamentos, sendo para eles agora e sempre necessário,até que possamos pensar sem termos disso consciência.
11. Nem sempre tem consciência disso. Concordo que a alma de um homem desperto jamais está vazia de pensamento, porque esta é a condição de estar acordado. Deve, porém, o homem desperto considerar se dormir sem sonhar afeta ou não o homem em sua totahdade, tanto a mente como no corpo. Pois é muito difícil imaginar que alguma coisa possa pensar e não estar consciente disso. Se a mente de um homem que dorme pensa sem ter consciência disso, pergunto:sentiu no pensamento algum prazer ou dor, ou foi capaz de ter felicidade ou infortunio. Estou seguro de que o homem não sentiu nada mais do que a cama ou a terra em que se encontra. Ser feliz ou miserável sem ter consciencia disso parece-me totalmente inconsciente e impossível. Quando o corpo dorme e impossível que a alma tenha pensamento, alegria e preocupações, prazer e sofrimento, embora o homem não seja nem consciente e nem participe disso. Certamente, Sócrates dormindo e Sócrates acordado não é a mesma pessoa, pois sua alma quando dorme, e Sócrates o homem, consistindo de corpo e alma, quando está acordado, são duas pessoas. Portanto Sócrates acordando, não tem conhecimento da felicidade ou relaçao como o infortúnio de sua alma, sentido por ele só quando dormia. Sem, contudo,percebê-los, assemelha-se a sua falta de sentimento pela felicidade ou infortúnio pelo homem das Indias, simplesmente porque não o conhece. Se for excluída totalmente a consciência de nossas ações ou sensaçoes, especialmente as do prazer e sofrimento, juntamente com os problemas que acompanham, será difícil caracterizar a identidade pessoal.
QUESTÕES
1. De que todo homem tem consciência?
2. De onde o homem apreende todo o material da razão e do conhecimento?
3. De quais duas formas de experiência derivam nossas idéias?
4. O que significa dizer que os “sentidos levam para a mente”?
5. Como Locke define a sensação?
6. Como define a reflexão?
7. Que o exemplo da criança utilizado por Locke visa confirmar?
8. Segundo Locke que tipo de reflexão os muitos homens deixam de fazer?
9. Porque para Locke a alma nem sempre pensa?
10. O que compõe nossa identidade pessoal?
PSICANÁLISE, ALIENAÇÃO SOCIAL E IDEOLOGIA. (MARILENA CHAUÍ)
O inconscienteFreud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas? A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve: “A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica… A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa fundamental da Psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão frequentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência… A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar.”
A psicanáliseFreud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos. Certa vez, recebeu uma paciente, Anna O., que apresentava sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas, dores de estômago), sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de problemas psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera (posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de “técnica de associação livre”). Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na noite anterior. Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente, que, tanto ela quanto ele, desconheciam. Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente. Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades: 1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes; 2. punir-se por ter tais sentimentos; 3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável. Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora, conscientemente, quisessem a cura, algo neles criava uma barreira, uma resistência inconsciente à cura. Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente operava simultaneamente de duas maneiras: 1. como resistencia à terapia; 2. Sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos sintomas da neurose e da psicose. Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas, sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos gestos).
A vida psíquicaDurante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais ideias e inovações. A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o supereu e o eu). Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente. O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões. Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização desse princípio do prazer. É a libido. Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital, mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo. Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os cinco ou seis anos, ligadas ao desenvolvimento do id: a fase oral , quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno, a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer; a fase anal , quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente no ânus e as excreções, fezes, brincar com massas e com tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas e sujar-se são os objetos do prazer; e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, o pai. No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela – mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas vidas. O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a repressão sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção da imagem do “eu ideal”, isto é, da pessoa moral, boa e virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência, situado entre os seis ou sete anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego. O ego ou o eu é a consciência, pequena parte da vida psíquica submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego, diz Freud, é “um pobre coitado”, espremido entre três escravidões: os desejos insaciáveis do id, a severidade repressiva do superego e os perigos do mundo exterior. Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos e internos). Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco. O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo indiretamente. A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é, representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe). Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do desejo. Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido. A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo -sexual a todos os objetos e todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas coisas, certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outras nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o complexo de Édipo. Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica – substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e pessoas – indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois níveis: o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e pessoas) e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais). Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto. Além dos recursos individuais cotidianos que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação. Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a Filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas, místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc. Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua própria função, também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens de prazer, é um outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação. O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau de consciência como consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela psicanálise. A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos têm de si mesmos. Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às ideias estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que as enfrente em nome da própria razão e do pensamento. A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento: somos um caniço pensante.
A alienação socialÀs três feridas narcísicas mencionadas por Freud, precisamos acrescentar mais uma: a que nos foi infligida por Marx com a noção de ideologia. Para compreendê-la, precisamos primeiro compreender o fenômeno da alienação social. Marx era filósofo, advogado e historiador, e interessou-se por um estudo feito por um outro filósofo, Feuerbach. Este investigara o modo como se formam as religiões, isto é, o modo como os seres humanos sentem necessidade de oferecer uma explicação para a origem e a finalidade do mundo. Ao buscar essa explicação, os humanos projetam fora de si um ser superior dotado das qualidades que julgam as melhores: inteligência, vontade livre, bondade, justiça, beleza, mas as fazem existir nesse ser superior como superlativas, isto é, ele é onisciente e onipotente, sabe tudo, faz tudo, pode tudo. Pouco a pouco, os humanos se esquecem de que foram os criadores desse ser e passam a acreditar no inverso, ou seja, que esse ser foi quem os criou e os governa. Passam a adorá-lo, prestar-lhe culto, temê-lo. Não se reconhecem nesse Outro que criaram. Em latim, “outro” se diz: alienus. Os homens se alienam e Feuerbach designou esse fato com o nome de alienação. A alienação é o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser-outro, separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles. Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas investigou sobretudo a alienação social. Interessou-se em compreender as causas pelas quais os homens ignoram que são os criadores da sociedade, da política, da cultura e agentes da História. Interessou-se em compreender por que os humanos acreditam que a sociedade não foi instituída por eles, mas por vontade e obra dos deuses, da Natureza, da Razão, em vez de perceberem que são eles próprios que, em condições históricas determinadas, criam as instituições sociais – família, relações de produção e de trabalho, relações de troca, linguagem oral, linguagem escrita, escola, religião, artes, ciências, filosofia – e as instituições políticas – leis, direitos, deveres, tribunais, Estado, exército, impostos, prisões. A ação sociopolítica e histórica chama-se práxis e o desconhecimento de suas origens e de suas causas, alienação. Por que os seres humanos não se reconhecem como sujeitos sociais, políticos, históricos, como agentes e criadores da realidade na qual vivem? Por que, além de não se perceberem como sujeitos e agentes, os humanos se submetem às condições sociais, políticas, culturais, como se elas tivessem vida própria, poder próprio, vontade própria e os governassem, em lugar de serem controladas e governadas por eles? Por que existe a alienação social? Por que os homens se deixam dominar pela sua própria obra ou criação histórica? Por que filósofos, teólogos, cientistas (portanto, o sujeito do conhecimento) elaboram teorias que reforçam a alienação? Por que filósofos dizem que a sociedade é produzida pela Natureza? Por que teólogos dizem que a família e o Estado existem por vontade de Deus? Por que os cientistas afirmam que a sociedade é racional e criada pela Razão Universal? Para compreender o fenômeno da alienação, Marx estudou o modo como as sociedades são produzidas historicamente pela práxis dos seres humanos. Verificou que, historicamente, uma sociedade (pequena, grande, tribal, imperial, não importa) sempre começa por uma divisão e que essa divisão organiza todas as relações sociais que serão instituídas a seguir. Trata-se da divisão social do trabalho. Na luta pela sobrevivência, os seres humanos se agrupam para explorar os recursos da Natureza e dividem as tarefas: tarefas dos homens adultos, tarefas das mulheres adultas, tarefas dos homens jovens, tarefas das mulheres jovens, tarefas das crianças e dos idosos. A partir dessa divisão, organizam a primeira instituição social: a família, na qual o homem adulto, na qualidade de pai, tornasse chefe e domina a mulher adulta, sua esposa e mãe de seus filhos, os quais também são dominados pelo pai. As famílias trabalham e trocam entre si os produtos do trabalho. Surge uma segunda instituição social: a troca, isto é, o comércio. Algumas famílias conquistam terras melhores do que outras e conseguem colheitas ou gado em maior quantidade que outras, trocando seus produtos por uma quantidade maior que a de outras. Ficam mais ricas. As muito pobres, não tendo conseguido produzir nada ou muito pouco, vêem-se obrigadas a trabalhar para as mais ricas em troca de produtos para a sobrevivência. Começa a surgir uma terceira instituição social: o trabalho servil, que desembocará na escravidão. Os mais ricos e poderosos reúnem-se e decidem controlar o conjunto de famílias, distribuindo entre si os poderes e excluindo algumas famílias de todo poder. Começa a surgir uma quarta instituição social: o poder político, de onde virá o Estado. Nessa altura, os seres humanos já começaram a explicar a origem e a finalidade do mundo, já elaboraram mitos e ritos. As famílias ricas e poderosas dão a alguns de seus membros autoridade exclusiva para narrar mitos e celebrar ritos. Criam uma outra instituição social: a religião, dominada por sacerdotes saídos das famílias poderosas e que, por terem a autoridade para se relacionar com o sagrado, tornam-se temidos e venerados pelo restante da sociedade. São um novo poder social. Os vários grupos de famílias dirigentes disputam entre si terras, animais e servos e dão início a uma nova instituição social: a guerra, com a qual os vencidos se tornam escravos dos vencedores, e o poder econômico, social, militar, religioso e político se concentra ainda ma is em poucas mãos. Como escreveu Maquiavel,toda sociedade é constituída pela divisão entre o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Com essa descrição, Marx observou que a sociedade nasce pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divisão social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder religioso e divisão social do poder político. Por que divisão? Porque em todas as instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra, religião, política) uma parte detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e saberes, terras, trabalhadores, poder político, enquanto outra parte não possui nada disso, estando subjugada à outra, rica, poderosa e instruída. Esse conjunto estruturado de divisões torna-se cada vez mais complexo, intrincado, numeroso, multiplicando-se em muitas outras divisões, sob a forma de numerosas instituições sociais e acabam por revelar a estrutura fundamental das sociedades como divisão social das classes sociais. A esse conjunto (tanto simples quanto complexo) de instituições nascidas da divisão social Marx deu o nome de condições materiais da vida social e política. Por que materiais? Porque se referem ao conjunto de práticas sociais pelas quais os homens garantem sua sobrevivência por meio do trabalho e da troca dos produtos do trabalho, e que constituem a economia. A variação das condições materiais de uma sociedade constitui a História dessa sociedade e Marx as designou como modos de produção. A História é a mudança, passagem ou transformação de um modo de produção para outro. Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos seres humanos, mas acontece de acordo com condições econômicas, sociais e culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma maneira também determinada, graças à práxis humana diante de tais condições dadas. O fato de que a mudança de uma sociedade ou a mudança histórica se faça em condições determinadas, levou Marx a afirmar que: “Os homens fazem a História, mas o fazem em condições determinadas ”, isto é, que não foram escolhidas por eles. Por isso também, ele disse: “Os homens fazem a História, mas não sabem que a fazem”. Estamos, aqui, diante de uma situação coletiva muito parecida com a que encontramos no caso de nossa vida psíquica individual. Assim como julgamos que nossa consciência sabe tudo, pode tudo, faz o que pensa e quer, mas, na realidade, está determinada pelo inconsciente e ignora tal determinação, assim também, na existência social, os seres humanos julgam que sabem o que é a sociedade, dizendo que Deus ou a Natureza ou a Razão a criaram, instituíram a política e a História, e que os homens são seus instrumentos; ou, então, acreditam que fazem o que fazem e pensam o que pensam porque são indivíduos livres, autônomos e com poder para mudar o curso das coisas como e quando quiserem. Por exemplo, quando alguém diz que uma pessoa é pobre porque quer, porque é preguiçosa, ou perdulária, ou ignorante, está imaginando que somos o que somos somente por nossa vontade, como se a organização e a estrutura da sociedade, da economia, da política não tivesse qualquer peso sobre nossas vidas. A mesma coisa acontece quando alguém diz ser pobre “pela vontade de Deus” e não por causa das condições concretas em que vive. Ou quando faz uma afirmação racista, segundo a qual “a Natureza fez alguns superiores e outros inferiores”. A alienação social é o desconhecimento das condições histórico-sociais concretas em que vivemos, produzidas pela ação humana também sob o peso de outras condições históricas anteriores e determinadas. Há uma dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhecem como agentes e autores da vida social com suas instituições, mas, por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos plenamente livres, capazes de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem, apesar das instituições sociais e das condições históricas. No primeiro caso, não percebem que instituem a sociedade; no segundo caso, ignoram que a sociedade instituída determina seus pensamentos e ações.
As três formas da alienação socialPodemos falar em três grandes formas de alienação existentes nas sociedades modernas ou capitalistas: 1. A alienação social, na qual os humanos não se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade e inteligência, podem mais do que a realidade que os condiciona. Nos dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo externo a nós, separado de nós, diferente de nós e com poder total ou nenhum poder sobre nós. 2. A alienação econômica, na qual os produtores não se reconhecem como produtores, nem se reconhecem nos objetos produzidos por seu trabalho. Em nossas sociedades modernas, a alienação econômica é dupla: Em primeiro lugar, os trabalhadores, como classe social, vendem sua força de trabalho aos proprietários do capital (donos das terras, das indústrias, do comércio, dos bancos, das escolas, dos hospitais, das frotas de automóveis, de ônibus ou de aviões, etc.). Vendendo sua força de trabalho no mercado da compra e venda de trabalho, os trabalhadores são mercadorias e, como toda mercadoria, recebem um preço, isto é, o salário. Entretanto, os trabalhadores não percebem que foram reduzidos à condição de coisas que produzem coisas; não percebem que foram desumanizados e coisificados. Em segundo lugar, os trabalhos produzem alimentos (pelo cultivo da terra e dos animais), objetos de consumo (pela indústria), instrumentos para a produção de outros trabalhos (máquinas), condições para a realização de outros trabalhos (transporte de matérias-primas, de produtos e de trabalhadores). A mercadoria-trabalhador produz mercadorias. Estas, ao deixarem as fazendas, as usinas, as fábricas, os escritórios e entrarem nas lojas, nas feiras, nos supermercados, nos shoppings centers parecem ali estar porque lá foram colocadas (não pensamos no trabalho humano que nelas está cristalizado e não pensamos no trabalho humano realizado para que chegassem até nós) e, como o trabalhador, elas também recebem um preço. O trabalhador olha os preços e sabe que não poderá adquirir quase nada do que está exposto no comércio, mas não lhe passa pela cabeça que foi ele, não enquanto indivíduo e sim como classe social, quem produziu tudo aquilo com seu trabalho e que não pode ter os produtos porque o preço deles é muito mais alto do que o preço dele, trabalhador, isto é, o seu salário. Apesar disso, o trabalhador pode, cheio de orgulho, mostrar aos outros as coisas que ele fabrica, ou, se comerciário, que ele vende, aceitando não possuí-las, como se isso fosse muito justo e natural. As mercadorias deixam de ser percebidas como produtos do trabalho e passam a ser vistas como bens em si e por si mesmas (como a propaganda as mostra e oferece). Na primeira forma de alienação econômica, o trabalhador está separado de seu trabalho – este é alguma coisa que tem um preço; é um outro (alienus), que não o trabalhador. Na segunda forma da alienação econômica, as mercadorias não permitem que o trabalhador se reconheça nelas. Estão separadas dele, são exteriores a ele e podem mais do que ele. As mercadorias são igualmente um outro, que não o trabalhador. 3. A alienação intelectual, resultante da separação social entre trabalho material (que produz mercadorias) e trabalho intelectual (que produz ideias). A divisão social entre as duas modalidades de trabalho leva a crer que o trabalho material é uma tarefa que não exige conhecimentos, mas apenas habilidades manuais, enquanto o trabalho intelectual é responsável exclusivo pelos conhecimentos. Vivendo numa sociedade alienada, os intelectuais também se alienam. Sua alienação é tripla: Primeiro, esquecem ou ignoram que suas ideias estão ligadas às opiniões e pontos de vista da classe a que pertencem, isto é, a classe dominante, e imaginam, ao contrário, que são ideias universais, válidas para todos, em todos os tempos e lugares. Segundo, esquecem ou ignoram que as ideias são produzidas por eles para explicar a realidade e passam a crer que elas se encontram gravadas na própria realidade e que eles apenas as descobrem e descrevem sob a forma de teorias gerais.Terceiro, esquecem ou ignoram a origem social das ideias e seu próprio trabalho para criá-las; acreditam que as ideias existem em si e por si mesmas, criam a realidade e a controlam, dirigem ou dominam. Pouco a pouco, passam a acreditar que as ideias se produzem umas às outras, são causas e efeitos umas das outras e que somos apenas receptáculos delas ou instrumentos delas. As ideias se tornam separadas de seus autores, externas a eles, transcendentes a eles: tornam-se um outro. As três grandes formas da alienação (social, econômica e intelectual) são a causa do surgimento, da implantação e do fortalecimento da ideologia.
A ideologiaA alienação se exprime numa “teoria” do conhecimento espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é diretamente percebida e vivida. Um exemplo desse senso comum aparece no caso da “explicação ” da pobreza, em que o pobre é pobre por sua própria culpa (preguiça, ignorância) ou por vontade divina ou por inferioridade natural. Esse senso comum social, na verdade, é o resultado de uma elaboração intelectual sobre a realidade, feita pelos pensadores ou intelectuais da sociedade – sacerdotes, filósofos, cientistas, professores, escritores, jornalistas, artistas -, que descrevem e explicam o mundo a partir do ponto de vista da classe a que pertencem e que é a classe dominante de uma sociedade. Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum social é a ideologia. Por meio dela, o ponto de vista, as opiniões e as ideias de uma das classes sociais – a dominante e dirigente – tornam-se o ponto de vista e a opinião de todas as classes e de toda a sociedade. A função principal da ideologia é ocultar e dissimular as divisões sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres humanos. Indivisão: apesar da divisão social das classes, somos levados a crer que somos todos iguais porque participamos da ideia de “humanidade”, ou da ideia de “nação” e “pátria”, ou da ideia de “raça”, etc. Diferenças naturais: somos levados a crer que as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são produzidas pela divisão social das classes, mas por diferenças individuais dos talentos e das capacidades, da inteligência, da força de vontade maior ou menor, etc. A produção ideológica da ilusão social tem como finalidade fazer com que todas as classes sociais aceitem as condições em que vivem, julgando-as naturais, normais, corretas, justas, sem pretender transformá-las ou conhecê-las realmente, sem levar em conta que há uma contradição profunda entre as condições reais em que vivemos e as ideias. Por exemplo, a ideologia afirma que somos todos cidadãos e, portanto, temos todos os mesmos direitos sociais, econômicos, políticos e culturais. No entanto, sabemos que isso não acontece de fato: as crianças de rua não têm direitos; os idosos não têm direitos; os direitos culturais das crianças nas escolas públicas são inferiores aos das crianças que estão em escolas particulares, pois o ensino não é de mesma qualidade em ambas; os negros e índios são discriminados como inferiores; os homossexuais são perseguidos como pervertidos, etc. A maioria, porém, acredita que o fato de ser eleitor, pagar as dívidas e contribuir com os impostos já nos faz cidadãos, sem considerar as condições concretas que fazem alguns serem mais cidadãos do que outros. A função da ideologia é impedir-nos de pensar nessas coisas.
Os procedimentos da ideologiaComo procede a ideologia para obter esse fantástico resultado? Em primeiro lugar, opera por inversão, isto é, coloca os efeitos no lugar das causas e transforma estas últimas em efeitos. Ela opera como o inconsciente: este fabrica imagens e sintomas; aquela fabrica idéias e falsas causalidades. Por exemplo, o senso comum social afirma que a mulher é um ser frágil, sensitivo, intuitivo, feito para as doçuras do lar e da maternidade e que, por isso, foi destinada, por natureza, para a vida doméstica, o cuidado do marido e da família. Assim o “ser feminino” é colocado como causa da “função social feminina”. Ora, historicamente, o que ocorreu foi exatamente o contrário: na divisão sexual social do trabalho e na divisão dos poderes no interior da família, atribuiu-se à mulher um lugar levando-se em conta o lugar masculino; como este era o lugar do domínio, da autoridade e do poder, deu-se à mulher o lugar subordinado e auxiliar, a função complementar e, visto que o número de braços para o trabalho e para a guerra aumentava o poderio do chefe da família e chefe militar, a função reprodutora da mulher tornou-se imprescindível, trazendo como consequência sua designação prioritária para a maternidade. Estabelecidas essas condições sociais, era preciso persuadir as mulheres de que seu lugar e sua função não provinham do modo de organização social, mas da Natureza, e eram excelentes e desejáveis. Para isso, montou-se a ideologia do “ser feminino” e da “função feminina” como naturais e não como históricos e sociais. Como se observa, uma vez implantada uma ideologia, passamos a tomar os efeitos pelas causas. A segunda maneira de operar da ideologia é a produção do imaginário social , através da imaginação reprodutora. Recolhendo as imagens diretas e imediatas da experiência social (isto é, do modo como vivemos as relações sociais), a ideologia as reproduz, mas transformando-as num conjunto coerente, lógico e sistemático de ideias que funcionam em dois registros: como representações da realidade (sistema explicativo ou teórico) e como normas e regras de conduta e comportamento (sistema prescritivo de normas e valores). Representações, normas e valores formam um tecido de imagens que explicam toda a realidade e prescrevem para toda a sociedade o que ela deve e como deve pensar, falar, sentir e agir. A ideologia assegura, a todos, modos de entender a realidade e de se comportar nela ou diante dela, eliminando dúvidas, ansiedades, angústias, admirações, ocultando as contradições da vida social, bem como as contradições entre esta e as ideias que supostamente a explicam e controlam. Enfim, uma terceira maneira de operação da ideologia é o silêncio. Um imaginário social se parece com uma frase onde nem tudo é dito, nem pode ser dito, porque, se tudo fosse dito, a frase perderia a coerência, tornar-se-ia incoerente e contraditória e ninguém acreditaria nela. A coerência e a unidade do imaginário social ou ideologia vêm, portanto, do que é silenciado (e, sob esse aspecto, a ideologia opera exatamente como o inconsciente descrito pela psicanálise). Por exemplo, a ideologia afirma que o adultério é crime (tanto assim que homens que matam suas esposas e os amantes delas são considerados inocentes porque praticaram um ato em nome da honra), que a virgindade feminina é preciosa e que o homossexualismo é uma perversão e uma doença grave (tão grave que, para alguns, Deus resolveu punir os homossexuais enviando a peste, isto é, a AIDS). O que está sendo silenciado pela ideologia? Por que, em nossa sociedade, o vínculo entre sexo e procriação é tão importante (coisa que não acontece em todas as sociedades, mas apenas em algumas, como a nossa)? Nossa sociedade exige a procriação legítima e legal – a que se realiza pelos laços do casamento -, porque ela garante, para a classe dominante, a transmissão do capital aos herdeiros. Assim sendo, o adultério e a perda da virgindade são perigosos para o capital e para a transmissão legal da riqueza; por isso, o adultério se torna crime e a virgindade é valorizada como virtude suprema das mulheres jovens. Em nossa sociedade, a reprodução da força de trabalho se faz pelo aumento do número de trabalhadores e, portanto, a procriação é considerada fundamental para o aumento do capital que precisa da mão-de-obra. Por esse motivo, toda sexualidade que não se realizar com finalidade reprodutiva será considerada anormal, perversa e doentia, donde a condenação do homossexualismo. A ideologia, porém, perderia sua força e coerência se dissesse essas coisas e por isso as silencia.
Ideologia e inconscienteDissemos que a ideologia se assemelha ao inconsciente freudiano. Há, pelo menos, três semelhanças principais entre eles: 1. o fato de que adotamos crenças, opiniões, ideias sem saber de onde vieram, sem pensar em suas causas e motivos, sem avaliar se são ou não coerentes e verdadeiras;2. ideologia e inconsciente operam através do imaginário (as representações e regras saídas da experiência imediata) e do silêncio, realizando-se indiretamente perante a consciência. Falamos, agimos, pensamos, temos comportamentos e práticas que nos parecem perfeitamente naturais e racionais porque a sociedade os repete, os aceita, os incute em nós pela família, pela escola, pelos livros, pelos meios de comunicação, pelas relações de trabalho, pelas práticas políticas. Um véu de imagens estabelecidas interpõe-se entre nossa consciência e a realidade; 3. inconsciente e ideologia não são deliberações voluntárias. O inconsciente precisa de imagens, substitutos, sonhos, lapsos, atos falhos, sintomas, sublimação para manifestar-se e, ao mesmo tempo, esconder-se da consciência. A ideologia precisa das idéias-imagens, da inversão de causas e efeitos, do silêncio para manifestar os interesses da classe dominante e escondê-los como interesse de uma única classe social. A ideologia não é o resultado de uma vontade deliberada de uma classe social para enganar a sociedade, mas é o efeito necessário da existência social da exploração e dominação, é a interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma única classe social.
Erguendo o véu, tirando a máscaraDiante do poder do inconsciente e da ideologia poderíamos ser levados a “entregar os pontos”, dizendo: Para que tanto esforço na teoria do conhecimento, se, afinal, tudo é ilusão, véu e máscara? Para que compreender a atividade da consciência, se ela é a “pobre coitada”, espremida entre o id e o superego, esmagada entre a classe dominante e os ideólogos? Todavia, uma pergunta também é possível: Como, sendo a consciência tão frágil, o inconsciente e a ideologia tão poderosos, Freud e Marx chegaram a conhecê-los, explicar seus modos de funcionamento e suas finalidades? No caso de Freud, foram a prática médica e a busca de uma técnica terapêutica para indivíduos que permitiram a descoberta do inconsciente e o trabalho teórico de onde nasceu a psicanálise. No caso de Marx, foi a decisão de compreender a realidade a partir da prática política de uma classe social (os trabalhadores) que permitiu a percepção dos mecanismos de dominação e exploração sociais, de onde surgiu a formulação teórica da ideologia. A busca da cura dos sofrimentos psíquicos, em Freud, e a luta pela emancipação dos explorados, em Marx, criaram condições para uma tomada de consciência pela qual o sujeito do conhecimento pôde recomeçar a crítica das ilusões e dos preconceitos que iniciara desde a Grécia, mas, agora, como crítica de suas próprias ilusões e preconceitos. Em lugar de invalidar a razão, a reflexão, o pensamento e a busca da verdade, as descobertas do inconsciente e da ideologia fizeram o sujeito do conhecimento conhecer as condições – psíquicas, sociais, históricas – nas quais o conhecimento e o pensamento se realizam. Como disseram os filósofos existencialistas acerca dessas descobertas: Encarnaram o sujeito num corpo vivido real e numa história coletiva real, situaram o sujeito. Desvendando os obstáculos psíquicos e histórico-sociais para o conhecimento, puseram em primeiro plano as relações entre pensar e agir, ou, como se costuma dizer, entre a teoria e a prática. QUESTÕES 1.Por que a descoberta freudiana do inconsciente foi mais uma ferida no narcisismo ocidental? 2. Como Freud chegou ao conceito de inconsciente? Como ele descreve a estrutura e o funcionamento da vida psíquica? 3.Por que o ego (ou consciência) é um pobre coitado? 4.Como opera o inconsciente(id e superego)?Qual a função dos sonhos, dos sintomas e da sublimação? 5. Diante do poder do inconsciente, Freud defendeu a força do pensamento. Por que? 6. O que é alienação religiosa? E alienação geral? 7. Qual o interesse de Marx pela alienação social? Como ele a compreendeu? 8. Por que a afirmação “”os homens fazem a História, mas não sabem que a fazem” é semelhante à descoberta freudiana do inconsciente? Quais as semelhanças entre ideologia e inconsciente? 9. O que é ideologia? Como ela surge?Quais suas funções? Por que é ilusão social? 10. As descobertas de Marx e Freud invalidam o trabalho consciente do pensamento?Justifique.
segunda-feira, 23 de maio de 2011
O BANQUETE - PLATÃO

Com efeito, parece-me os homens absolutamente não terem percebido o poder do amor, que se o percebessem, os maiores templos e altares lhe preparariam, e os maiores sacrifícios lhe fariam, não como agora que nada disso há em sua honra,quando mais que tudo deve haver. É ele com efeito o deus mais amigo do homem, protetor e médico desses males, de cuja cura dependeria sem dúvida a maior felicidade para o gênero humano. Tentarei eu portanto iniciar-vos em seu poder, e vós o ensinareis aos outros. Mas é preciso primeiro aprenderdes a natureza humana e as suas vicissitudes. Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Oto é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a contar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. As outras pregas, numerosas, ele se pôs a polir, e a articular os peitos, com um instrumento semelhante ao dos sapateiros quando estão polindo na forma as pregas dos sapatos; umas poucas ele deixou, as que estão à volta do próprio ventre e do umbigo, para lembrança da antiga condição. Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida. E então de há tanto tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana. Cada um de nós portanto é uma parte complementar de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois; e procura então cada um o seu próprio complemento. (...)Depois de ouvir essas palavras, sabemos que nem um só diria que não, ou demonstraria querer outra coisa, mas simplesmente pensaria ter ouvido o que há muito estava desejando, sim, unir-se e confundir-se com o amado e de dois ficarem um só. O motivo disso é que nossa antiga natureza era assim e nós éramos um todo; é portanto ao desejo e procura do todo que se dá o nome de amor. Anteriormente, como estou dizendo, nós éramos um só, e agora é que, por causa da nossa injustiça, fomos separados pelo deus, e como o foram os árcades pelos lacedemônios; é de temer então, se não formos moderados para com os deuses, que de novo sejamos fendidos em dois, e perambulemos tais quais os que nas estelas estão talhados de perfil, serrados na linha do nariz, como os ossos que se fendem. Pois bem, em vista dessas eventualidades todo homem deve a todos exortar à piedade para com os deuses, a fim de que evitemos uma e alcancemos a outra, na medida em que o Amor nos dirige e comanda. Que ninguém em sua ação se lhe oponha - e se opõe todo aquele que aos deuses se torna odioso – pois amigos do deus e com ele reconciliados descobriremos e conseguiremos o nosso próprio amado, o que agora poucos fazem.(...)
O nascimento do Amor e a Filosofia
Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.(...)
Diotima explica para Sócrates a escala de graus do amor
( o Amor Platônico)
São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito,começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para o conhecimento que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza do saber, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um rapaz, de um homem ou de uma só ocupação, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele um certo conhecimento, único, tal que o seu objeto é o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para os belos conhecimentos até que dos conhecimentos acabe naquele conhecimento, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os rapazes e jovens atraentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando?
Questões
1. O que aconteceria se os homens se apercebessem do poder do amor?
2. Como era a natureza humana primitiva?
3. O que fizeram Zeus e os deuses com os ancestrais dos humanos e por que?
4. A partir desse mito como explicar a idéia de “cara metade”?
5. Por que o amor torna dois em um?
6. Em que dia nasceu Amor e quem eram seus pais?
7. Que características Amor recebeu de seus pais?
8. Por que os deuses e os ignorantes não filosofam?
9. Em que consiste proceder corretamente nos caminhos do amor?
10. Quando é possível produzir reais virtudes?
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

JEAN-PAUL SARTRE
TRECHOS DO LIVRO
O primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais individual, se quero casar-me, ter filhos, ainda que esse casamento dependa exclusivamente de minha situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, escolhendo o casamento estou engajando não apenas a mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem.
Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloqüentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lugar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara freqüentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não consegue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. É fato que muitas pessoas não sentem ansiedade, porém nós estamos convictos de que estas pessoas mascaram a ansiedade perante si mesmas, evitam encará-la; certamente muitos pensam que, ao agir, estão apenas engajando a si próprios e, quando se lhes pergunta: mas se todos fizessem o mesmo?, eles encolhem os ombros e respondem: nem todos fazem o mesmo. Porém, na verdade, devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não podemos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma espécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Mesmo quando ela se disfarça, a angústia aparece. É esse tipo de angústia que Kierkegaard chamava de angústia de Abraão. Todos conhecem a história: um anjo ordena a Abraão que sacrifique seu filho. Está tudo certo se foi realmente um anjo que veio e disse: tu és Abraão e sacrificarás teu filho. Porém, para começar, cada qual pode perguntar-se: será que era verdadeiramente um anjo? ou: será que sou mesmo Abraão? Que provas tenho? Havia uma louca que tinha alucinações: falavam-lhe pelo telefone dando-lhe ordens. O médico pergunta: “Mas afinal, quem fala com você?” Ela responde: “Ele diz que é Deus”. Que provas tinha ela que, de fato, era Deus? Se um anjo aparece, como saberei que é um anjo? E se escuto vozes, o que me prova que elas vêm do céu e não do inferno, ou do subconsciente ou de um estado patológico? O que prova que elas se dirigem a mim? Quem pode provar-me que fui eu, efetivamente, o escolhido para impor a minha concepção do homem e a minha própria escolha à humanidade? Não encontrei jamais prova alguma, nenhum sinal que possa convencer-me. Se uma voz se dirige a mim, sou sempre eu mesmo que terei de decidir que essa voz é a voz do anjo; se considero que determinada ação é boa, sou eu mesmo que escolho afirmar que ela é boa e não má. Nada me designa para ser Abraão, e, no entanto, sou a cada instante obrigado a realizar atos exemplares. Tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada homem e se regrasse por suas ações. E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fazer a si mesmo esta pergunta, é porque estará mascarando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensiva e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exigem uma interpretação: é dessa interpretação – responsabilidade sua – que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angústia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angústia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se dêem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. Veremos que esse tipo de angústia – a que o existencialismo descreve – se explica também por uma responsabilidade direta para com os outros homens engajados pela escolha. Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.
Quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, queremos simplesmente dizer que Deus não existe e que é necessário levar esse fato às últimas conseqüências. O existencialista opõe-se frontalmente a certo tipo de moral laica que gostaria de eliminar Deus com o mínimo de danos possível. Quando, por volta de 1880, os professores franceses tentaram constituir uma moral laica, disseram mais ou menos o seguinte: Deus é uma hipótese inútil e dispendiosa; vamos suprimi-la: porém, é necessário – para que exista uma moral, uma sociedade, um mundo policiado – que certos valores sejam respeitados e considerados como existentes a priori; é preciso que seja obrigatório, a priori, ser honesto, não mentir, não bater na mulher, fazer filhos etc., etc. Vamos portanto realizar uma pequena manobra que nos permitirá demonstrar que esses valores existem, apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, se bem que, como vimos, Deus não exista. É essa, creio eu, a tendência de tudo o que é chamado na França de radicalismo: por outras palavras, a inexistência de Deus não mudará nada; reencontramos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo e teremos assim transformado Deus numa hipótese caduca, que morrerá tranqüilamente por si própria. O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incômodo que Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qualquer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser honestos, que não devemos mentir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não teremos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o homem a cada instante. Ponge escreveu, num belíssimo artigo: “O homem é o futuro do homem”. É exatamente isso. Apenas, se por essas palavras se entender que o futuro está inscrito no céu, que Deus pode vê-lo, então a afirmação está errada, já que, assim, nem sequer seria um futuro. Se se entender que, qualquer que seja o homem que surja no mundo, ele tem um futuro a construir, um futuro virgem que o espera, então a expressão está correta. Porém, nesse caso, estamos desamparados. Tentarei dar-lhes um exemplo que permita compreender melhor o desamparo; contarei o caso de um dos meus alunos, que veio procurar-me nas seguintes circunstâncias: o pai estava brigando com a mãe e tinha tendências colaboracionistas; o irmão mais velho morrera durante a ofensiva alemã de 1940; e esse jovem, com sentimentos um pouco primitivos mas generosos, desejava vingá-lo. A mãe vivia só com ele, muito perturbada pela semitraição do pai e pela morte do filho mais velho, e ele era seu único consolo. Esse jovem tinha, naquele momento, a seguinte escolha: partir para a Inglaterra e alistar-se nas Forças Francesas Livres, ou seja abandonar a mãe, ou permanecer com a mãe e ajudá-la a viver. Ele tinha consciência de que a mãe só vivia em função dele e que o seu desaparecimento, talvez a sua morte, a mergulharia no desespero. Tinha também consciência de que, no fundo, cada ato que ele fazia em relação à mãe tinha uma resposta concreta, no sentido de que ele a ajudava a viver, enquanto cada ato que ele fizesse para partir e combater seria ambíguo, poderia perder-se na areia, não servir para nada; por exemplo: partindo para a Inglaterra, ele poderia permanecer indefinidamente num campo espanhol ao passar pela Espanha; poderia chegar à Inglaterra, ou a Argel, e ser colocado num escritório preenchendo papéis. Encontrava-se, assim, perante dois tipos de ação muito diferentes; uma delas concreta, imediata, porém dirigida a um só indivíduo; a outra, dirigida a um conjunto infinitamente mais vasto, uma coletividade nacional, mas, por isso mesmo, ambígua, e podendo ser interrompida a meio caminho. Simultaneamente, ele hesitava entre dois tipos de moral. De um lado, uma moral da simpatia, da devoção individual; e, de outro lado, uma moral mais ampla, mas de uma eficácia mais contestável. Precisava escolher uma das duas. Quem poderia ajudá-lo a escolher? A doutrina cristã? Não. A doutrina cristã diz: sede caridosos, amai o próximo, sacrificai-vos por vosso semelhante, escolhei o caminho mais árduo etc., etc. Mas qual é o caminho mais árduo? Quem devemos amar como irmão, o combatente ou a mãe? Qual a utilidade maior: aquela, vaga, de participar de um corpo de combate, ou a outra, precisa, de ajudar um ser específico a viver? Quem pode decidir a priori? Ninguém. Nenhuma moral estabelecida tem uma resposta. (...)Já que os valores são vagos e que eles são sempre amplos demais para o caso preciso e concreto que consideramos, só nos resta confiar em nosso instinto. Foi o que o jovem tentou fazer; e, quando nos encontramos, ele dizia: no fundo, o que conta é o sentimento; eu deveria escolher aquilo que verdadeiramente me impele em determinada direção. Se eu sentir que gosto da minha mãe o bastante para lhe sacrificar todo o resto – meu desejo de vingança, meu desejo de ação, meu desejo de aventuras –, fico com ela. Se, pelo contrário, eu sentir que meu amor por minha mãe não é suficiente, então eu parto. Mas como determinar o valor de um sentimento? O que é que constituía o valor do sentimento que ele tinha por sua mãe? Precisamente o fato de que ele permanecera, por ela. Posso dizer: amo tal amigo o suficiente para lhe sacrificar tal soma de dinheiro; mas só poderei dizê-lo se o fizer. Posso dizer: amo minha mãe o bastante para ficar junto dela; mas não posso determinar o valor dessa afeição a não ser, precisamente, que eu pratique um ato que a confirme e a defina. Ora, como eu desejo que esse afeto justifique os meus atos, acabo sendo arrastado num circulo vicioso.
Por outro lado, Gide disse, e muito bem, que um sentimento representado e um sentimento vivido são duas coisas quase indiscerníveis: decidir que amo minha mãe ficando junto dela, ou representar uma comédia que me levará a ficar, por causa de minha mãe, é mais ou menos a mesma coisa. Por outras palavras: o sentimento constrói-se através dos atos praticados; não posso, portanto, pedir-lhe que me guie. O que significa que não posso nem procurar em mim mesmo a autenticidade que me impele a agir, nem buscar numa moral os conceitos que me autorizam a agir. Vocês dirão: pelo menos, o jovem procurou o professor para pedir-lhe conselho. Porém, se vocês procurarem um padre, por exemplo, para que eles os aconselhe, vocês estarão escolhendo esse padre, e, no fundo, vocês já estarão sabendo, aproximadamente, o que ele lhes irá aconselhar. Ou seja: escolher o conselheiro é, ainda, engajar-se. A prova disso está em que, se vocês forem cristãos, dirão: consulte um padre. Existem, no entanto, padres colaboracionistas, padres oportunistas, padres resistentes. Qual deles escolher? E, se o jovem escolher um padre resistente ou um padre colaboracionista, já estará decidindo o tipo de conselho que irá receber. Assim, vindo procurar-me, ele sabia a resposta que eu lhe daria, e eu só tinha uma única resposta: você é livre; escolha, isto é, invente. Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a seguir; não existem sinais no mundo. Os católicos argüirão: sim, existem sinais. Admitamos que sim; de qualquer modo, ainda sou eu mesmo que escolho o significado que têm. Quando estive preso, conheci um homem assaz notável, que era jesuíta, havia ingressado na ordem dos jesuítas da seguinte forma: tinha experimentado uma série de dolorosos fracassos; ainda criança, seu pai morrera deixando-o pobre; entrou como bolsista numa instituição religiosa onde faziam questão de lembrar-lhe a todo instante que ele era aceito por caridade; em seguida, perdera diversas distinções honoríficas que tanto agradam às crianças; mais tarde, por volta dos dezoito anos, fracassou numa aventura sentimental; finalmente, aos vinte e dois anos, falhou em sua preparação militar, fato bastante pueril que, no entanto, constituiu a gota que fez transbordar o jarro. Esse jovem podia portanto considerar que fracassara em tudo; era um sinal, mas um sinal de quê? Poderia refugiar-se na amargura ou no desespero. Porém, muito habilmente para si próprio, considerou que seus insucessos eram um sinal de que ele não nascera para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé, estavam ao seu alcance. Viu, portanto, nesse sinal, a vontade de Deus e ingressou na Ordem. Quem poderia deixar de perceber que a decisão sobre o significado do sinal foi tomada por ele e só por ele? Seria possível deduzir outra coisa dessa série de insucessos: por exemplo, que seria melhor se ele fosse carpinteiro ou revolucionário. Ele carrega, portanto, a total responsabilidade da decifração. O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos. Quanto ao desespero, trata-se de um conceito extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre elementos prováveis. Posso contar com a vinda de um amigo. Esse amigo vem de trem ou de ônibus; sua vinda pressupõe que o ônibus chegará na hora marcada e que o trem não descarrilhará. Permaneço no reino das possibilidades; porém, trata-se de contar com os possíveis apenas na medida exata em que nossa ação comporta o conjunto desses possíveis. A partir do momento em que as possibilidades que estou considerando não estão diretamente envolvidas em minha ação, é preferível desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum designo poderá adequar o mundo e seus possíveis à minha vontade. No fundo, quando Descartes afirmava: “É melhor vencermo-nos a nós mesmos do que ao mundo”, ele queria dizer a mesma coisa: agir sem esperança. Os marxistas, com quem conversei, retrucam-me: “Em sua ação, que estará, evidentemente, limitada por sua morte, você pode contar com a ajuda dos outros. Isso significa contar, simultaneamente, com o que os outros farão alhures para ajudá-lo, na China, na Rússia, e com o que eles farão mais tarde, depois de sua morte, para retomar sua ação e conduzi-la até sua completa realização, ou seja, à revolução. Você deve contar com isso, caso contrário estará demonstrando falta de moral”. Antes de mais nada devo dizer que contarei sempre com meus companheiros de luta, na medida em que esses companheiros estão engajados comigo numa luta concreta e comum, na unidade de um partido ou de um grupo que eu posso, em linhas gerais, controlar; ou seja, ao qual eu pertenço como militante, e de cujos movimentos estou ciente a cada instante. Nesse caso, contar com a unidade e com a vontade desse partido é exatamente como contar com o fato de que o ônibus chegará na hora certa e o trem não descarrilhará. Não posso, porém, contar com homens que não conheço, fundamentando-me na bondade humana ou no interesse do homem pelo bem-estar da sociedade, já que o homem é livre e que não existe natureza humana na qual possa me apoiar. Não sei qual será o futuro da revolução russa; posso admirá-la e tomá-la como exemplo, na medida em que tenho provas, hoje, de que o proletariado desempenha, na Rússia, um papel que ele não desempenha em nenhuma outra nação. Mas não posso afirmar que tal situação irá forçosamente conduzir ao triunfo do proletariado; devo ater-me ao que vejo; não posso ter certeza de que meus companheiros de luta retomarão o meu trabalho após minha morte para o conduzir à máxima perfeição, visto que esses homens são livres e decidirão livremente, amanhã, sobre o que será o homem; amanhã, após minha morte, alguns homens podem decidir instaurar o fascismo, e outros podem ser bastante covardes ou fracos para permitir que o façam; nesse momento, o fascismo será a verdade humana e pior para nós; na realidade, as coisas serão como o homem decidir que elas sejam. Isso significa que eu deva abandonar-me ao quietismo? De modo algum. Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha fórmula: “não é preciso ter esperança para empreender”. Isso não quer dizer que eu não deva pertencer a um partido, mas que não deverei ter ilusões e que farei o melhor que puder. Por exemplo, se eu perguntar a mim mesmo: a coletivização, enquanto tal, será um dia implantada? Como vou saber? Sei apenas que farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela o seja; eu o farei; para além disso, não posso contar com mais nada. O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros podem fazer o que eu não posso. A doutrina que lhes estou apresentando é justamente o contrário do quietismo, visto que ela afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida. Em função disso, podemos entender por que nossa doutrina horroriza certo número de pessoas. Freqüentemente, elas dispõem de um único recurso para suportar a sua miséria, e é o de pensar o seguinte: “As circunstâncias estavam contra mim; eu valia muito mais do que aquilo que fui; é certo que não tive nenhum grande amor ou nenhuma grande amizade, mas foi porque não encontrei um homem ou uma mulher dignos de tal sentimento; se não escrevi livros muito bons, foi porque não tive tempo livre suficiente para fazê-lo; se não tive filhos a quem me dedicar, foi porque não encontrei o homem com quem teria podido construir a minha vida. Permaneceram, portanto, em mim, inutilizadas e inteiramente viáveis, uma porção de disposições, de inclinações, de possibilidades que me conferem um valor que o simples conjunto de meus atos não permitem inferir”. Ora, na verdade, para o existencialista, não existe amor senão aquele que se constrói; não há possibilidade de amor senão a que se manifesta num amor; não há gênio senão aquele que se expressa em obras de arte; o gênio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o gênio de Racine é a série de tragédias que escreveu; para além disso, não há nada. Por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma outra tragédia, se, justamente, ele não o fez? Um homem compromete-se com sua vida, desenha seu rosto e para além desse rosto, não existe nada. Evidentemente, tal pensamento pode parecer difícil de aceitar por alguém que tenha fracassado em seus projetos de vida. Mas, por outro lado, ele leva as pessoas a entenderem que só a realidade conta, que os sonhos, as esperas, as esperanças, só permitem que o homem se defina como sonho malogrado, como esperanças abortadas, como esperas inúteis; ou seja, que ele se defina em negativo e não em positivo; todavia, quando se diz: “tu nada mais és do que tua vida...”, isso não implica que o artista seja julgado unicamente por suas obras de arte; mil outras coisas contribuem igualmente para defini-lo. O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos.
QUESTÕES:
1. Qual o primeiro passo do existencialismo?
2. O que quer dizer para o existencialista: “o homem é responsável por si mesmo”?
3. Quais os dois sentidos da palavra subjetivismo?
4. Explique porque o homem vive em angústia?
5. Por que a angustia se constitui a condição da ação?
6. O que o existencialista quer dizer quando fala em desamparo?
7. O que implica para os homens a não existência de Deus?
8. Como se explica o desespero para o existencialista?
9. Explique o que quer dizer: “a realidade não existe a não ser na ação”.
10. Que recurso as pessoas utilizam para suportar suas misérias?
domingo, 13 de fevereiro de 2011
A Alegoria da Caverna / Platão

In: PLATÃO. A república. Trad. de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997, p.225-8.
Sócrates: (...) Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoços acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas.
Glauco: Estou vendo.
Sócrates : Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e outros seguem em silêncio.
Glauco: Um quadro estranho e estranhos prisioneiros.
Sócrates: Assemelham-se a nós. E , para começar, achas que, numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus companheiros, mais do que sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna que lhes fica defronte?
Glauco: Como, se são obrigados a ficar de cabeça imóvel durante toda a vida?
Sócrates: E como as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
Glauco: Sem dúvida.
Sócrates: Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tornariam por objetos reais as sombras que veriam?
Glauco: É bem possível.
Sócrates: E se a parede do fundo da prisão provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a sombra que passasse diante deles?
Glauco: Sim, por Zeus!
Sócrates: Dessa forma, tais homens não atribuirão realidade senão às sombras dos objetos fabricados.
Glauco: Assim terá de ser.
Sócrates: Considera agora o que lhes acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao fazer todos esses movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é? Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora?
Glauco: Muito mais verdadeiras.
Sócrates: E se o forçarem a fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do que as que se lhe mostram?
Glauco: Com toda certeza.
Sócrates: E se o arrancarem à força da sua caverna, o obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais violências? E,quando tiver chegado à luz, poderá com os olhos ofuscados pelo seu brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras?
Glauco: Não o conseguirá, pelo menos de início.
Sócrates: Terá, creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia, o Sol e a sua luz.
Glauco: Sem dúvida.
Sócrates: Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é.
Glauco: Necessariamente.
Sócrates: Depois disso, poderá concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os seus companheiros de cativeiro, não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram?
Glauco: Sim, com certeza, Sócrates.
Sócrates: E se então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou último lugar, ou virem juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse a inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então, como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua, a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e viver como vivia?
Glauco: Sou da tua opinião. Preferirá sofrer tudo a ter de viver dessa maneira.
Sócrates: Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar bruscamente da luz do Sol?
Glauco: Por certo que sim.
Sócrates: E se tiver de entrar de novo em competição com os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras, estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto, pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada, pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo?
Glauco: Sem nenhuma dúvida.
Questões:
1) Como era a caverna descrita no texto?
2) Explique como foi o processo de libertação do prisioneiro;
3) Por que o ex- prisioneiro voltou a caverna?
4) Como os prisioneiros reagiram diante da tentativa do ex-prisioneiro em libertá-los?
5) Por que existem pessoas vivendo dentro de caverna e que não se importam com isto, não se questionam?
terça-feira, 24 de novembro de 2009
Mesmidade e Ipseidade

Para Paul Ricoeur o homem participava de duas dimensões: social e moral. Tanto em uma como em outra, o que o definia como indivíduo era a "linguagem". Linguagem que possibilitava o pensamento, a interpretar e dizer o mundo, e também instituir o indivíduo. Para discorrer sobre o sujeito social Ricouer constituiu o conceito de "mesmidade" e para pensar o sujeito moral autônomo e independente, o de "ipseidade". Mesmidade indicava o que tornava esse sujeito um ente social, da espécie humana,como era dito pelos outros. Entrava em relevo as decrições definidas( forma de categorizar o indivíduo e formar um núcleo social, ex: o garoto que faz as tarefas, a garota que gosta de ouvir música,etc.), os nomes próprios (para agregar em núcleos deparentescos, ex: Marcelo Sousa e Maria Sousa,etc.) e os indicadores ( o uso de pronomes que cri nucleos de relações, ex: pronomes: eu, tu,ele, nós,etc; advérbios de lugar: aqui, ali , acolá; advérbios de tempo: hoje, amanhã, agora, ontem; adveérbios de modo: bem, mal, melhor,etc.).
Mas o que diferenciava o indivíduo de todos os outros da sociedade? O que fazia com que este fosse alguém singular e insubistituível? A sua ipseidade! Ipseidade seria aquilo que caracteriza o indivíduo como ser único, singular, como nenhum outro era, o que o mesmo dizia de si. Para tal era necessário as narrativas e as promessas. As narrativas seriam a história de vida contada pelo indivíduo e que o distinguia de todos os demais, enquanto as promessas seriam a junção entre a fala e a atividade correspondente. Nesta última teríamos como conhecer o indivíduo pela maneira como fala, sobre o que fala, sobre a relevância dessa e o cumprimento.
Ricoeur reconhecia a influencia da natureza, da edcação e de nossas ecolhas e propunha um caminho ético pautado pelo cuidado de si mesmo levando em conta a linguagem, a história de vida e a concomitância entre a fala e a ação.
terça-feira, 3 de novembro de 2009
A ética utilitarista de Bentham e Stuart Mill

Ao falarmos de utilitarismo, não podemos deixar de fazer menção de dois mentores ingleses dessa vertente ética: Jeremy Bentham(1748-1832) e John Stuart Mill(1806-1873).
O objetivo dos utilitaristas era propiciar o maximo de felicidade possivel para o maior número de pessoas, e o minimo de dor para o menor número de pessoas. Desse modo a felicidade estava ligada ao prazer e a infelicidade a dor.Era preciso então proceder ao cálculo dos prazeres de acordo com Bentham e saber diferenciar entre prazeres superiores e inferiores para Stuart Mill.
Para o cálculo dos prazeres Bentham estabelceu sete variáveis: intensidade (grau de desfrute do prazer), duração (extensão do tempo do início até o término do prazer), certeza ou incerteza (probabilidade do prazer acontecer),proximidade ou longinquidade(intervalo de tempo que decorre do prazer satisfeito),fecundidade( probabilidade do prazer ou a dor multiplicarem-se respectivamente em outros prazeres e dores), pureza ( probabilidade de não serem seguidos de sensações opostas, do prazer a dor e vice-versa) e extensão ( o número de indivíduos afetados pelo meu desfrute). Stuart Mill ao invés de quantificar o prazer, procurava qualificá-lo para isso dividiu em prazeres superiores (os relacionados ao intelecto, a estética e a sociedade) e os inferiores (relacionados aos desejos do corpo). Outra divisão feita por Mill foi a do considerado "útil" e do "expediente". "Útil" seria o que contribui para a felicidade geral, enquanto "expediente" o que serviria a um fim próximo qualquer. Enfim, os dois filosofos completam-se em suas concepções éticas e contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade mais solidária.
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